O repouso das coisas

segunda-feira, julho 20, 2015

Estava fazendo faxina na minha papelada da faculdade e encontrei um texto lindo da Martha Medeiros no meio, digno de ser postado:

O repouso das coisas

Não gosto de escrever um texto e mandá-lo imediatamente para a redação do jornal. Escrevo com certa folga de tempo, para que eu possa deixar o texto dormir um sono reparador antes de jogá-lo às feras.

Assim como as pessoas, certas coisas precisam descansar para recomporem-se. No caso do texto, é fundamental para mim esquecê-lo por um pequeno período. Quando volto a poros olhos nele, horas ou dias depois, consigo detectar melhor suas falhas, repetições ou parágrafos confusos: é a hora da faxina, de limpar o que está sobrando, e só então liberá-lo para seu destino. Lamento pelos vestibulandos que não podem apelar para esse recurso, escrevendo contra o relógio suas redações, sem chance de revisá-las com a cabeça fresca.

O repouso das coisas é cada vez mais raro nesse mundo onde todos estão atrasados para alguma coisa. Diariamente, temos que decidir, optar e cumprir prazos para ontem, sem muita chance de deixar as  resoluções tirarem uma soneca antes de serem efetivadas. Fica assim prejudicada a clareza necessária para detectar nossos erros e acertos.

No calor de uma discussão, levamos a sério todas as bobagens que nos dizem, passando rapidamente para o contra-ataque e assim dinamitando a relação. Se pudéssemos levar nossa mágoa pra cama e com ela dormir, acordaríamos no outro dia enxergando-a sem maquiagem e no tamanho que ela realmente tem: miúda diante de coisas mais importantes do que as palavras rudes que, na noite anterior, escaparam sem querer.

Um sim dito às pressas, um não que foi verbalizado por medo, um silêncio onde deveria haver um argumento: vacilos póstumos. Pudéssemos botar para dormir nossas dúvidas, acordaríamos mais sábios e menos impetuosos. Mesmo as paixões velozes merecem um certo resguardo, uma espiada mais distanciada, para ver onde estamos nos metendo. Cadê tempo, porém, para o afastamento necessário de nós mesmos, para melhor nos enxergar?

A realidade não permite tais romantismos. Vence quem toma decisões rápidas, caso de cirurgiões, artilheiros, policiais, motoristas. Fica cada vez mais difícil contar até dez antes de tomar uma atitude. Sorte a minha que posso me dar ao luxo de trabalhar e viver com relativa calma, deixar esse texto dormir na escuridão do computador desligado e só amanhã acender a luz, fazer nele alguns afagos e apertar, finalmente, a tecla send. Como cantava Gal Costa, "a vida não é mais do que o ato da gente ficar/ no ar/ antes de mergulhar".



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